Lampejo de Paisagem
“Uma voz sussurra em meu ouvido – talvez seja um monólogo,
talvez eu fale comigo mesmo: O passado vive em ti!”
Iberê Camargo
Há algum tempo venho me perguntando quais rumos a pintura contemporânea brasileira adotará daqui em diante. Confesso, que
o pessimismo dos tempos atuais não contribui muito com os meus possíveis prognósticos. Em tempos de louvação dos - agora
possíveis - objetos imateriais, das ações que não buscam permanência, ou ainda, dos pensamentos fluentes nos pós-rizomas
desfronteirizados, os rumos da velha titia que construiu seu tempo na cozinha da História parecem ter se havido num descompasso
entre mercado e puro desejo.
O que se faz, afinal, com todo aquele aparato de pintura que ninguém mais utiliza adequadamente? O que resta após décadas
de desconstrução dos meios de produzir pintura, sobre qual superfície for, se não mais conhecemos o básico da mistura das cores e da
aproximação destas com as suas vizinhas?
No Brasil, tudo nos leva a crer que a tradição do novo, eternizada pela máxima de Pedrosa de que estaríamos fadados ao Moder-
no, extrapolou seus limites quando, ao se associar a um desejo de mercado esqueceu-se que o passado que vive latente nas ações
cotidianas, mesmo tentando superá-lo, não se deve apagar. Esta é a lição das vanguardas que o modernismo brasileiro não entendeu.
Parece que o constante apagamento do passado, com vistas a uma sobreposição de camadas de novas ideias, resulta numa perple-
xidade frente ao óbvio, como se a cada objeto de pintura colocado no circuito – sem refletir sobre a responsabilidade de colocar uma
imagem no mundo – fosse uma grande descoberta. Pode ser, em alguns casos, que cada objeto seja mesmo uma descoberta e resulte
de uma pesquisa válida. Porém, considerando o recorrente ‘interesse’ pela pintura, falta uma compreensão na ideia mesma do que seja
a responsabilidade de pintar, algo que cesse a tensão de romper o fio que liga a produção contemporânea de pintura com os procedi-
mentos mais elementares da técnica que vem se apagando desde os anos 90 no Brasil. É certo que sempre teremos Guignard, Iberê,
Maria Leontina, Senise e tantos outros. Relativizando alguns casos específicos, para além do tal ‘interesse’ pela pintura, não percebo
um empenho real em compreender o que seja a pintura para além da simples ação de colorir uma superfície qualquer. Como o passado
vive em nós e nunca se apaga, percebo que de algum modo a pintura, feita em sua cozinha com o zelo e tempo necessários, tem des-
pertado em alguns jovens artistas um desejo específico da técnica e por seus temas tradicionais. Este é o caso de Cela Luz, que esbo-
ça em seus trabalhos atuais uma direção para a pintura que ficou adormecida em meados dos anos 60, ainda na maré dos construtivis-
mos nacionais. A sua pesquisa não se configura como um resgate histórico de uma noção de pintura que ficou parada no tempo por
abnegação ou nulidade. Antes, retoma um interesse dentro do terreno da pintura adormecido pela dureza da vida nos anos 70, pela
necessidade de burlar a censura e a repressão, pela filiação imediata de tendências internacionais ou pela facilidade de embarcar em
discursos ineditistas que não superariam os limites daquele tempo. Nas pequenas paisagens que a artista vem desenvolvendo em seu
ateliê, notam-se os preenchimentos das fissuras do tempo que ela resgata sem saber, e ao fazê-lo reconstrói um caminho trilhado por
outros artistas, que, como Cela Luz aproveitam o espaço sugestivo da tela para que dela nasça outro trabalho. Não desejo que este
texto pareça uma crítica celebrativa do trabalho da artista. Ao contrário, desenha um momento de reflexão acerca do caminho que ela
mesma decidiu trilhar, bem como aponta para as responsabilidades que assume ao colocar no mundo as imagens que produz. Apenas
a experiência da pintura e seus resultados formais primeiros não são suficientes para dirigir a pesquisa de um artista. Por isso, acredito
que a artista esteja trilhando um bom caminho, pois seu trabalho nasce das imagens que constrói primeiro em sua consciência. Suas
obras são fatos visuais, lampejos de realidade agregadas de sensibilidade e potência plástica. Em resumo, poderia dizer que o
empenho na construção das telas e o valor que agrega a sua materialidade, ratificam o apreço com que dota seus frames de paisagem.
Neles estão visíveis a curiosidade sobre os alcances do suporte e, ao mesmo tempo, uma desenvoltura com a plasticidade da tin-
ta do óleo. Do jogo íntimo entre arguir o lugar de projeção e estruturar camadas de cor até consolidar uma imagem, Cela estabelece
um progressivo caminho que resulta em imaginações do conceito de paisagem. Em alguns trabalhos subtrai matéria, risca, desenha,
extrai formas, retorna as camadas internas de suas pinturas como se buscasse o momento do frame em as imagens primeiras se
impuseram sobre ela. Assim como Iberê, que buscava persistentemente um caráter para seus modelos, a artista procura um estado
pleno de ‘ser no mundo’, apesar do mundo. À deriva da selvageria pictórica¹ de Iberê, a artista opera dentro das fronteiras de uma
pintura civilizada, sem, contudo, perder a dimensão essencial da liberdade da criação e dos procedimentos de dissecação da própria
pintura. Neste sentido, seus trabalhos voltam constantemente sobre si mesmos, mas nunca da mesma maneira. Liberdade. Talvez seja
este o termo que melhor defina a atual fase da pintura da artista. Entre as memórias afetivas e pequeninos lampejos de paisagem,
realizar aparições de lugar, fatos plásticos repletos e compostos por cores vibrantes, estrutura leve e sensação de pertencimento.
Shannon Botelho
2019
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Termo utilizado por Cecília Cotrim sobre a poética de Iberê Camargo. In: Cecilia Cotrim. Selvageria Pictórica. In: Sônia Salzstein. (Org.). Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo/Porto Alegre: Cosac & Naify/Fundação Iberê Camargo, 2003, p. 140-149.
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Landscape Flash
“A voice whispers in my ear - maybe it's a monologue,
maybe I'll talk to myself: The past lives in you! ”
Iberê Camargo
I have been wondering for some time which directions Brazilian contemporary painting will adopt from now on. I confess that the
pessimism of the present times does not contribute much to my possible predictions. In times of praise of - now possible -immaterial
objects, of actions that do not seek permanence, or even of the flowing thoughts in the post rhizomes unbounded, the directions of the
old aunt who built her time in the kitchen of history seem to have happened in a mismatch between market and pure desire.
What is done, after all, with all that painting apparatus that nobody else uses properly? What remains after decades deconstructing the
means of producing a painting, on whatever surface it is on, if we no longer know the basics of mixing colors and their approximation
with their neighbors?
In Brazil, everything leads us to believe that the tradition of the new, eternalized by Pedrosa's idea that we would be doomed to
the Modern Period, exceeded its limits when associated with an art market desire had forgotten that the past, that lives latently in every
day actions even if we try to overcome, should not be erased. That's the avant-garde lesson that Brazilian modernism didn't understand.
It seems that the constant erasure of the past with layers of new ideas overlapped results in perplexity when faced with the obvious. As
if each painting object released on the circuit - without reflecting on the responsibility of putting an image on the world - were a great
discovery. It may be that in some cases each object is actually a discovery and results from valid research. However, considering the
recurrent 'interest' in painting, there is a lack of perception in the responsibility to paint, something that ceases the tension of breaking
the thread that connects contemporary painting production with the most elementary techniques that have been fading out since the
1990’s in Brazil. It is true that we will always have Guignard, Iberê, Maria Leontina, Senise, and many others. Even if I relativize some
specific cases to beyond an 'interest' in painting, I do not see a real commitment to an understanding of what is a painting beyond the
simple action of coloring any surface.
As the past lives on us and never goes out, I realize that somehow painting, made in their kitchen with the determination and time
needed, has stimulated some young artists a deep interest in the technique and its traditional themes. This is the case of Cela Luz, who
outlines in her current works a direction for a painting that fell asleep in the mid-60s, still in the tide of Brazilian constructivism.
Her search is not configured as a historical redemption of a notion of painting that stood in time for selflessness or nullity. Rather, it re-
news an interest within the territory of painting that rested during the hardness of life in the '70s, on the necessity to circumvent censor-
ship and repression by immediately affiliating with international trends or by the easiness of embarking on immediatist speeches that
would not exceed the limits of that time.
In the small landscapes that the artist has been developing in her studio, it is perceivable the cracks of time filled that she
unknowingly rescues, and in doing so, rebuilds a path traced by other artists, that like Cela Luz take advantage of the suggestive space
of the canvas so that another work is born. I do not want this text to sound like a celebratory critique of the artist's work.
On the contrary, I draw a moment of reflection on the path that she decided to follow, as well as point out the responsibilities she takes
when placing in the world the images that she produces. Just the experience of painting and its initial formal results are not enough to
direct an artist's research. So I believe the artist is on a good path because her work is born from the images she first builds in her
consciousness. Her works are visual facts, flashes of reality aggregated with sensitivity and plastic power. In summary, I could say that
the commitment to the construction of the canvas and the power that adds to its materiality, rectify the concern with what endows her
landscape frames.
On them are visible the curiosity about the extent of the support and, at the same time, an easiness with the plasticity of the oil
paint. From the intimate game between arguing the place of projection and structuring color layers to consolidate an image, Cela
establishes a progressive path that results in imaginations of the landscape category. In some works, she subtracts material, scratches,
draws, pulls shapes, brings out the inner layers of her paintings as if she is seeking the moment of the frame in the first images imposed
on her. Like Iberê, who sought persistently a character for his models, the artist seeks a mindful state of 'being in the world', despite the
world. Drifting from Iberê's pictorial savagery¹, the artist operates within the borders of a civilized painting, without, however, losing the
essential dimension of freedom of creation and the dissection procedures of painting. In this sense, her work returns constantly about
themselves, but never in the same way. Freedom. Maybe this is the term that best defines the current phase of the artist's painting.
Between the affective and tiny memories landscape flashes, make representations of places, plastic facts full and built with vibrant
colors, light structure and sense of belonging.
Shannon Botelho
2019
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1 A term used by Cecília Cotrim on the poetics of Iberê Camargo. In: Cecilia Cotrim. Pictorial Savagery. In: Sonia
Salzstein. (Org.). Dialogues with Iberê Camargo. São Paulo / Porto Alegre: Cosac & Naify / Iberê Camargo Foundation, 2003,
P. 140-149.